sábado, 29 de novembro de 2008

Pelas escadas acima ...

Vou fazer-te uma pergunta curiosa. Considera todos os números 1, 2, 3, 4, 5, ... Uns são ímpares, 1, 3, 5, 7, ... , e outros são pares, 2, 4, 6, 8, ... Pode perguntar-se: Há mais pares que ímpares, ou o contrário? A resposta é simples e imediata: ao 1, ímpar, segue-se o 2, par; ao ímpar seguinte, 3, segue-se o par seguinte, 4... A situação é clara. Podes pôr cada ímpar de braço dado com o par que se lhe segue. Assim, metade dos números são ímpares e metade pares. Há tantos ímpares como pares.
Continuemos. Considera agora, por um lado, todos os números: 1, 2, 3, 4, 5, ... e, por outro, todos os números pares: 2, 4, 6, 8, ... Perguntemos de novo: Quais são mais, os números todos ou os números pares?
A tua primeira ideia será com certeza mais ou menos assim : Ora essa! Nem todos os números são pares. Basta olhar para 1, 3, 5... Portanto, há mais números que números pares. Mas pensa um pouco no que fizeste atrás quando comparaste pares e ímpares. Puseste cada ímpar de braço dado com um único par e disseste: Há tantos pares como ímpares. Será que aqui não podes fazer algo parecido? Pensa um pouco...
Sim! Percebeste imediatamente. Cada número par pode dividir-se por 2 (claro!). Assim, obtemos os casais (ver figura abaixo).

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Na fila de cima estão todos os números pares na de baixo todos os números, e as setas indicam qual é par de qual: os números pares são tantos como os números todos!
Que disparate é este? Provavelmente foi isto que Galileu pensou quando estas idéias, que constituem o que hoje chamamos paradoxo de Galileu, lhe passaram pela cabeça pela primeira vez. Euclides, Aristóteles e o senso comum de todos os tempos tinham dito sempre que o todo é maior que a parte. Os números pares obtêm-se pegando em todos os números e tirando os ímpares e, portanto, são parte de um todo. Mas nós pusemos agora mesmo cada número par de braço dado com um único número, e nenhum número ficou sem o seu parceiro par, o que torna claro que são tantos os números pares como os números todos.
Um paradoxo é uma situação mental que se nos depara quando, raciocinando de um modo claramente justificado, chegamos a uma conclusão, e, raciocinando de outro modo, que nos parece igualmente justificado com a mesma clareza, chegamos à conclusão oposta.
Um paradoxo não é uma desgraça, é uma grande oportunidade, pois indica que há algo de profundo por baixo de toda a questão que não compreendemos bem e que nos pode levar a mundos novos. Os colegas de Niels Bohr, um dos grandes físicos do nosso tempo, ouviram-no uma vez murmurar, no meio de um problema difícil: "Ótimo! Encontrámos um paradoxo. Agora é que podemos ter esperança de progredir". Galileu não foi mais longe nos seus pensamentos sobre o paradoxo dos números pares. Provavelmente tinha muitas outras coisas para pensar que lhe interessavam mais. Mais de dois séculos passaram até Georg Cantor se ocupar deste assunto, pegando no dilema de frente: "Há mais números naturais do que números pares... Há tantos números naturais como números pares... O todo é maior que a parte..." O que é que significa "haver mais"...? Quando afirmo que um monte é maior que uma sua parte, quero dizer que posso separar esta parte e ainda fica qualquer coisa no monte. Quando afirmo que há tantos pares como naturais, estou a dizer que os posso emparelhar um a um, e não fica nenhum número natural nem nenhum número par sem parceiro.
Há portanto duas maneiras diferentes de comparar.
Consideremos o conjunto de coisas A e o conjunto de coisas B. Há tantas coisas em A como em B quando se pode emparceirar cada coisa de A com uma coisa de B de forma que não fique nenhuma de A nem de B sem parceiro e, além disso, nenhuma coisa de A seja parceiro de duas coisas distintas de B, nem nenhuma coisa de B esteja emparceirada com coisas distintas de A. Isto admite uma expressão mais sofisticada e assustadora em termos de aplicações bijectivas e todas essas coisas, mas penso que a idéia que nos vai interessar já se entende com o que está escrito.
Quando cada coisa de A se pode emparceirar com uma única coisa de B, mas, faça-se como se fizer, em B ficam sempre coisas sem parceiro, é evidente que B tem mais coisas que A.
Esta maneira de comparar, enunciada por Cantor, é a que se presta a um desenvolvimento matemático adequado. Porquê? Porque integra um critério operativo bastante manejável: Há tantas coisas em A como em B quando podemos usar as coisas de B para etiquetar correctamente as de A, isto é, para colocar em cada coisa de A como etiqueta, uma coisa de B distinta sem que, ao fazê-lo, nos sobrem etiquetas (coisas de B).
Euclides, por seu lado, também tinha razão com aquilo de o todo A ser maior que a parte B, entendendo por isso que, se B é uma parte de A, é porque as coisas de B são coisas de A e, além disso, há outras de A que não são de B. Mas isto está tão perto de ser uma tautologia que dificilmente se poderia usar para alguma coisa de interessante em matemática.

Miguel de Guzmán. Aventuras Matemáticas, Pág. 65, Editora Gradiva, Lisboa - Portugal, 1990.

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